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O amor acaba

Não obstante toda insalubridade, o coração sobrevive à miséria. Anda pelos becos, afugentado, à procura de abrigo. Chega a cantar "Singing in the rain" sem guarda-chuva, absurdo para o cinema clássico. Aos prantos, imita Charles Chaplin a proteger a vida do bebê indefeso.
O ódio torna-se refém da ternura ao perceber que, mesmo desamparado, pode estar melhor acompanhado consigo mesmo. Sente frio. O Sangue, outrora vermelho-sangue, refrigera-se ao azul-escuro. Seus dezenove centímetros de altura não passam agora de quinze de largura. Manchas púrpuras rodeiam suas extremidades.
Foi então que percebe o perigo. Corre desesperadamente. Pula duas ou três cercas, deita-se. O silêncio é interrompido, subitamente. Gritos de escárnio. O coração, afugentado, recomeça sua fuga desnorteada. Pula no lago recém congelado. Aquela noite de outono trouxera os píncaros da saudade. Imerge! Nessa hora o coração já está gelado, intransponível. Sente calafrios, medos, sensações de indiferença. Desfalece, rumo à nulidade, naquela triste noite de outono!
E por incrível que pareça, descobrira a passagem que Peter Pan utilizara para arraigar a magia. Digo incrível justamente por não ter sido ajudado pelas coronárias. Coração valente! E também, quando menos percebe, retoma sua temperatura habitual de verão, ainda naquela triste noite de outono. A coragem apareçe aos poucos, e a força para sustentar tanta vida é praticamente ressucitada!
Passado o inverno, naquela feliz tarde de primavera, resolve voltar àquele mesmo lago, cujas águas não mais dispesavam temor. Umedece a ponta do dedo do pé esquerdo e nota certa simpatia no beija-flor ao lado. O resultado não poderia ser outro: olha para o lado e o ódio, que havia esperado uma estação inteira para agir, desfere três projéteis de calibre razoáveis no coração do coração, incapazes de fazer resultar em casamento.
E, como estava dizendo, o problema não é a miséria, é a ignorância!

Rodrigo Sluminsky





+++ Etecetera

O amor acaba, Paulo Mendes Campos

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