quarta-feira, 28 de julho de 2004

Paris? Texas?!

Somos magros, somos feios, somos negros. Somos brancas, somos escravas, somos mineiros. Também somos daqueles paulistas bandeirantes, triunfantes nessas florestas tropicais, que estão perecendo nos desertos imemoriais do Império Americano... Nós não somos bacanas, não somos "hermanos"; nós somos ilegais!
Nossas mulheres fazem fila por subempregos, nossos filhos multiplicados criam confusões dos diabos com desejos e miscigenações. As raças puras dos velhos continentes que se cuidem com muros de vergonha, murros sem vergonha e passaportes de sangue azul. Estamos sempre em trânsito, procurando um lugar onde cair duros. E essas paisagens são bonitas de se ver em tecnicolor, mas letais nas realidades banais de nossos calores humanos!
O fato é que vagamos em vagões de gado, à espera de uma esmola, um trocado, um salário ou uma vaga em Auschwitz. Escondidos nos fundos falsos dos contêineres subsidiados, somos sufocados por esses pós da China que se acumulam na bacanal do comércio internacional. Será que a felicidade é estrangeira, nos punindo por termos nascido na pátria de Deus? Ou o Senhor é do Timor? É cubano? É panamenho? É ou não é brasileiro?! Fazendo tanta besteira com a criação, poucos duvidam da origem de sua instrução...
Cansamos de comer pelas bordas as migalhas jogadas por essa elite ilustrada, que se repete na mesma história de poder e marmelada, já que prefere a sonoridade da prosperidade distante às lavanderias dos seus próprios quintais, onde os empregados informais choram abraçados a crucifixos e aventais.
Se não somos iguais perante as próprias leis, o que seremos? Marginais de nós mesmos? É para rir? É para chorar? Para respeitar? O quê? De quem? Onde? A aflição globalizante acabará com Governador Valadares? Ninguém mais saltará do pico do Ibituruna? Quem velará pela mensagem de Augusto dos Anjos quando a cidade de Leopoldina for declarada extinta? O que farão os bombeiros bombados e bronzeados sem os rachas e os acidentados no eixo sagrado de Palmas? O açude de Cajazeiras se transformará numa cloaca quando não houver mais quem cuide de sua pureza? Exu perderá a fama de mau? Que pedra é essa no meio do nosso caminho? O que faz os goianos se lançarem às miragens no deserto do Arizona não é o mesmo que faz outros depositarem os butins da terra arrasada em contas cifradas na Europa enregelada?Será que é porque aqui se morre de fome antes de lá morrermos de sede?
Podemos estar na moda dos modelos anoréxicos, o que não nos põe comida no prato. Saco vazio, por mais bem maquiado, não pára em pé. Nós avançamos. Pulamos as cercas, comemos poeira, mergulhamos nas águas paradas das fronteiras contaminadas! Aliás, quem são os soldados desconhecidos que passam boiando nesses rios ridículos que separam mulheres de homens? Qual será a cova final dos nossos cadáveres, uma vez que suas famílias estão miseráveis para esses traslados sofisticados?
A desnutrição faz a vanguarda deserdada que se espalha por esses campos ressecados de batalhas, carregando as tralhas em mochilas espremidas e amedrontadas pelas mordidas dos coiotes que abundam farejadores. O que ocorreria se corrêssemos desses bichos que, em ficando, nos pegariam, nos matariam e nos comeriam num Estado Nacional ou noutro? Todos preferem a vida a peso de dólar, essa é que é a verdade, ou a vaidade, desses burgueses. Nisso se assemelham aos patriotas locais muitas vezes mais espertos, cuja prole já vive a boa vida eterna, estudando num paraíso fiscal ou intelectual qualquer. Preferimos fritar as batatas baratas que enchem as barrigas desses turistas brasileiros em visita aos monumentos genocidas dos nossos antepassados. Embalamos o seu luxo, erotizamos vosso tédio, recolhemos vosso lixo!
Somos bobos, somos fracos, somos mixos! Até os falsários portugueses nos chamam de burros bem-comportados, uma vez que lhes passamos a maior parte do dinheiro mal suado em agiotagens nessas oficinas de costura puritanas, quartos de crianças arianas e lanchonetes multinacionais.
Podemos perfurar os poços dos vice-presidentes, fazer figuração em filmes decadentes, pornográficos... haveremos de nos encontrar sobreviventes nas portas das estações de trem, trocando seringas e doenças endovenosas. Nos envenenaremos de desprezo, de raiva e saudades caprichosas. Também poderemos ser mordidos por vírus esquisitos nesses sexos fáceis, sem proteção ou anticorpos...
Detidos para averiguações, pagamos imediatamente a temerária fiança temporária aos advogados de porta de alfândega; mas se nada disso resolver e formos presos por essas polícias políticas, que nos sirvam uma boa refeição quente, um copo de café com leite e vista para alguma "highway". Quem sabe aí a gente possa imaginar um lugar diferente, onde tudo passa de repente, até a ilusão do movimento... Me digam: quem é o malandro? Quem é otário? Quem é revolucionário?
Quando os supostos democratas históricos se juntam aos fascistas de plantão por 15 minutos de fama filmada em campanhas esclerosadas, talvez seja mesmo a hora de parar, de amaldiçoar, de partir... 

Fernando Bonassi
 
Fernando Bonassi é paulistano, nascido na Mooca em 1962. Escritor, roteirista e cineasta, tem inúmeros livros lançados, dentre os quais citamos: A incrível história de Naldinho, um bandidão o bandidinho?, O céu e o fundo do mar, 100 coisas, Declaração universal do moleque invocado (indicado para o Prêmio Jabuti em 2002), O amor é uma dor feliz, Ta louco! e Passaporte. Vencedor da bolsa do Kunstlerprogramm do DAAD, passou um ano em Berlim escrevendo. Tem contos e livros publicados na França, Alemanha e EUA. É formado em Cinema pela ECA-USP, tendo participado como diretor/roteirista dos filmes Castelo Rá Tim Bum e O trabalho dos homens. É dele o roteiro de Um céu de estrelas, longa de Tata Amaral. Para o teatro, escreveu As coisas ruins de nossa cabeça e participou da concepção de montagens do Teatro da Vertigem, de Antonio Araújo. Com a peça Woyzeck desmembrado retornou a parceria feita anteriormente com o ator Matheus Nachtergaele. 


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releituras de Fernando Bonassi 

Filmografia

segunda-feira, 5 de julho de 2004

Dias atrás, ouviu-se uma história de um jovem que se suicidara em uma cidadezinha nos Andes chamada Cerro de Pasco. Segundo relatos, tal garoto chegara de longe, muito longe, ainda que não se soubesse donde, e naquela fria noite de inverno fora se aquecer em um dos estabelecimentos apropriados da cidade. Entrara no bar com passos de forasteiro, mas com um olhar aquém da realidade outrora imaginada. Sentara numa das únicas três banquetas disponíveis. Ao seu lado, o fidalgo não espera segundos para perguntar-lhe:
- O garoto tem nome?
- Tive, mas perdi-o com o tempo. Aliás, tinha nome e sobrenome, palavras e consciência. Tive rumo, flores e propósito. Hoje, tenho a mim, e é o que me basta!
- Pode até ser verdade que não traz consigo a aflição pretérita, mas este lugar não lhe espera e não lhe acolhe! Sugiro que desbanque seus culhões e encontre um lugar seguro para sua melancolia.
- Cá estou, cá não quis estar. Simplesmente acompanhei minhas pernas!
- E sugiro também que não ande como se não quisesse chegar a lugar nenhum!

O garoto então, humildemente, levantara-se da banqueta alheia e rumara em direção à porta. Foi encontrado morto dias depois, com pés e mãos congelados, sorriso nos lábios e uma mensagem no peito: cheguei o mais longe que pude, para não ficar parado!
Matou-se, enfim, para deixar na memória dos que ficaram o escárnio pelo apriorismo!

Rodrigo Sluminsky


"(...) não importa onde já chegou, mas onde está indo, mas se você não sabe para onde está indo, qualquer lugar serve."
William Shakespeare


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Matt's Journal (Travelling photos)

Free as a bird, the Beatles