- Bom dia - disse o Senhor da barba rala e olhar enviesado.
Percebi dele certa angústia no ar, própria das pessoas sem situação definida. Quis perguntar-lhe certas coisas, porém receoso não o fiz. Parecia-me estranho um senhor daquela idade com tamanha insegurança pessoal, ao mesmo aparente.
- Bom dia, Senhor - disse-lhe num instante especialmente impróprio, quando minhas palavras misturavam-se a pensamentos incautos e despropositados. Nesse momento um bom percentual de acontecimentos rodeavam a lembrança de minha pouca experiência mundana, quiçá mais que pudesse suportar. Quem dirá sobre as fantasias daquele senhor, aparentando a mais sincera humildade por mim já admirada, depois de já atrofiadas as prepotências terrenas provenientes de anseios indecorosos e posses imbecis. Deve ser mesmo na velhice que percebemos os porquês de tanta frustração pessoal no mundo, embora pareça-me perfeitamente compreensível não percebê-los antes. Somos constantemente bombardeados por informações inúteis e desprovidas de caráter epistemológico suficiente à sobrevivência mental de um herege. Desideratos são transformados em devaneios contra nossa vontade, e com o passar do tempo os devaneios acabam se tornando sonhos de adolescentes e pensamentos de viúvas e memórias de cárceres e ilusões de tetraplégicos e ironias de milionários. Em um momento determinado, não sei quando, mas acho que na velhice saberei, nesse exato momento saberemos plenamente os motivos pelos quais alguns fatos nos tornaram menos virtuosos, saberemos o dia em que pecamos de modo mais irreversível.
- Meu jovem, eu não devia estar falando com você, agora. Falar com uma pessoa deveria ser materialmente impossível. Sou algo que não se define, se é que sou alguma coisa. Eu deveria estar morto, decapitado, deserdado de meu corpo, e assim despido de princípios, de idéias putrificadas há anos pela realidade a que nos submetemos, rodeados de verdades, se é que somos vistos aqui por baixo e se, por ventura, há mesmo verdades nessa realidade insípida.
Devo confessar que meus ânimos debandaram e senti uma certa tranqüilidade nas mansas palavras daquele senhor de olhos aprofundados pelo tempo. De certo modo concordei com os pontos que pude compreender em sua pequena oratória surreal - senão perfeitamente consciente e deveras inteligível ao menos de uma devoção maravilhosa.
- O Senhor me desculpe pela desfaçatez, mas o tino censura minha liberdade e sinaliza minha partida, pois não é muito seguro conversar com estranhos!
Nesse momento agradeci-lhe os cumprimentos, acelerei os passos e arrefeci toda a curiosidade a que fui submetido pelo meu inconsciente. Não hesitei um momento sequer em dizer adeus àquele senhor, porém a redenção de não perguntar-lhe os porquês que ele guardava no coração levará uma vida inteira para se concretizar.
Rodrigo Sluminsky
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