quarta-feira, 24 de março de 2004

Poética

"De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo (...)"

Trecho de Poética, de Vinicius de Moraes



+++ Etecetera

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sábado, 20 de março de 2004

Outra Comédia da Vida Privada
uma homenagem a Luís Fernando Veríssimo

O sujeito nasce, do nada, como se fosse qualquer hortifruti encontrado na mercearia do seu Agostinho. Parecido com aquele repolho de segunda-feira. Também não pedira para nascer. Fora jorrado do ventre de sua matriarca.
- Olha - diz ela -, ser mãe é "padecer no paraíso". Estou realizada!
Pois é, então! Tanto faz! Acontece que o maldito acabara por conhecer o que os religiosos chamam de "passagem". E dera de cara logo com aquele estúpido auto-didata que se denomina obstetra. Isso depois molestar sua mãe, agarrar suas pernas e bater na sua bunda.
No entanto, segundo o pai, nascera com um peso considerável - 2,789 Kg - e uma expressão de vencedor. Tinha até barba! Dá para imaginar a cara de felicidade do paspalho. Aliás, ninguém tinha muita certeza se aquele ser que estava na sala de cirurgia era realmente o pai. Eu não botaria minha mão no fogo. Sei que a dona Nezinha tinha um foginho no rabo (ah, como tinha!), mas nada que comprometesse sua idoneidade. Dava até pra entender. O seu Bartolomeu Fagundes era daqueles senhores com uma vida regrada, motivo de orgulho para sua mãe, dona Josefina. Não bebia muito. Trabalhava com afinco. Repudiava intensamente o ócio. Jogatina para ele era buraco com a sogra, a mãe e a esposa. Amigos, só na pelada de quinta à noite, mas tinha que ser antes das nove. E comia, como comia.
No final, surgiu um repolho com cara de menino, que, segundo o padre que o batizou, seria um garoto de muita sorte. Eu não sei ao certo se eles estavam sacramentando-o numa igreja ou num canjerê, mas sei que a merda estava feita. Choradeira por todos os lado. Comilança inescrupulosa - como em qualquer festa de família. Afinal, havia nascido para incomodar todos à sua volta.
Com dois anos de idade, seu Bartolomeu e dona Nezinha começaram a perder as estribeiras com o garoto. Agia de maneira estranha com os pais - comia pouco, não queria tomar banho. Resolveram levá-lo ao doutor "pau-de-arara", que agora se chamava pediatra. Riu, à primeira vista. Chamou-os no canto e explicou-lhes o "causo": seu filho é absolutamente normal. Ele simplesmente apresenta sintomas do Complexo de Édipo! E não é que o filho-da-puta ficava mesmo segurando o cocô? Só não sei dizer até que idade ele sentia essa aflição, mas o ciúme do pai para com a mãe, ao menos, durou até pelo os cinco anos de idade.
Passado um certo tempo, o garoto já estava pronto para à civilidade: era hora de colocá-lo na escola. E não porque ele tinha que aprender alguma coisa, por verdade, mas é que o pai e a mãe tinham que sair para trabalhar. Afinal, quem pagaria a escola do piazão? Só sei que no final ele acabou indo pro Jardim de Infância "Pequeno Príncipe", cujo CNPJ se repete 138 vezes só no Estado de Santa Catarina. Conhecera a Tia Paula, que lhe ensinara inúmeras coisas, tais como não subir nas portas, não mijar fora do vaso, não derramar suco na calça, não correr em sala de aula, não brigar com os colegas, não levantar a saia das meninas, não pular a janela etc. Até sua mãe reconhecera os "esforços" da diretoria da escola em aconselhar ao filho os bons costumes.
Transcorrido esse tempo de latência, chegara o momento de saber o que são aqueles troços na embalagem do seu salgadinho predileto. Sim, começara a "alfabetização"! Dizia ele para a mãe que o dinheiro era para compra papel de ofício (e como essa escola era ambientalmente irresponsável!). A tia do cachorro quente é que garantia sua renda mensal. Eu, hipoteticamente falando, não tenho do quê reclamar. Mas meus pais têm!
Noutros tempos aquele repolho mal-formado tornara-se um touro considerável, que aos quinze anos detinha seus 1,89m de altura. Lembro-me bem, como se fosse hoje, a discrepância de sua altura com a de seu pai (1,73m).
Utopia mesmo era a faculdade de fisioterapia. Acho que gostava dessas coisas de esporte e tal, como um boiadeiro das coisas da fazenda. Resolveu por cursá-la. Na colação de grau, desabafa à sua mãe: que merda, esse alvará para mexer na coxa dos outros não é o que quero! Acabou contratado pelo senhor Dorival, chefe de seu pai. Era agora assistente administrativo da segunda maior empresa de palitos de dente da América Latina.
Casou-se, enfim, com uma moça chamada Maria de Lurdes. Rapariga de família rica do noroeste da cidade de Palmeiral, no ápice de sua beleza, aos dezoito aninhos. Puríssima, com direito a namorico de portão, véu e grinalda no casamento e sangue na lua-de-mel. Raridade no mercado matrimonial.
Depois desse pouco tempo de experiências, sob o mesmo teto puderam perceber como a vida era mais que o conjunto de circunstâncias favoráveis. Morar juntos não chegava a ser difícil, mas era no mínimo estranho. Eles não sabiam, mas por incrível que pareça o amor estava com eles o tempo todo. No entanto, palavras de carinho e juras de amor eram minunciosamente calculadas. Publicamente, reservavam-se às risadas marotas, sem nenhuma interpretação extensiva. Eram certamente um casal comedido, cheio de mistérios. Ela, maravilhosa, percebe que aos vinte e dois anos suas nádegas não padeciam mais ao paraíso da mesma forma quando o rapaz as atracava ausente de pudor. Ele, por trabalhar com seu pai, recebendo ordens de um vagabundo ocioso, herdeiro das Matarazzo & Cia Corporações, sentia-se afugentado pela agonia. Ainda mais agora que a invenção mais supreendente dos cientistas alemães era uma espécie de anti-séptico bucal (não no seu sentido literal) chamado "fio-dental".
Odiernamente, chamavam essa aflição de melancolia, e aguda, coisa que se transformara em depressão matrimonial. E o pior era que ambos sentiam a angúsita da carência e não viam um no outro a resolução de seus problemas.
Um dia, então, um Domingo de Páscoa, para ser mais preciso, a sedução, que parecia ser recíproca, gerou uma fomenta imensurável naquela manhã nublada. Eis que, alguns meses depois, naquele primeiro dia do mês de janeiro de 1972, nasce a terceira geração dos Fagundes, para a felicidade de todos. Era mais enrugado e um pouco mais roxo, mas ainda tinha cara de repolho. Seu Bartolomeu, asmático, não pôde comparecer à festança. Sua avó, dona Nezinha, foi a primeira a pegar-lhe no colo, pois o pai, ou suposto, já que ninguém tinha muita certeza que aquele ser na sala de cirurgia era realmente o pai, estava emocionadíssimo com tamanha bênção divina. Lembraram-se todos da nossa senhora falecida, dona Josefina, matriarca da família. O avô, segundo a lenda, era um experiente pescador que morreu no norte da Escandinávia fugindo de uns corsários espanhóis. Mas isso já é uma outra história.

Rodrigo Sluminsky



+++ Etecetera

O Nascimento da Tragédia, Nietzsche

quinta-feira, 18 de março de 2004

>>> Organização, excelência, felicidade, otimismo, beleza, coragem, experiência, objetividade, satisfação, imponência, força, bem-estar, audácia, determinação, alegria, êxito, civilidade, harmonia, nobreza, satisfação, vida, prosperidade, expectativa, vigor, inspiração, honra, modernidade, certeza, bondade, intrepidez, resolução, conformismo, segurança, integridade, perseverança, sagacidade, veracidade, fidelidade, salubridade, ação, deleite, intrepidez, agilidade, fervor, fraternidade, amor, honestidade, patriotismo, sanidade, ilibidez, ética, literatura, cortesia, competência, conveniência, concruência e coerência. Et coetera.


Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade



+++ Etecetera

Amsterdam, Coldplay
>>> Desorganização, imperfeição, melancolia, pessimismo, fealdade, covardia, imperícia, subjetividade, descontentamento, modéstia, fraqueza, mal-estar, timidez, indefinição, tristeza, fracasso, delinquência, orgia, pobreza, desgosto, morte, retrocesso, desespero, apatia, desânimo, infâmia, caducidade, dúvida, maldade, medo, hesitação, inconformismo, instabilidade, parcialidade, desistência, inépcia, displicência, crueldade, ódio, indignidade, antinacionalismo, insanidade, contaminação, imoralidade, secularidade, impolidez, ignorância, inconveniência, incongruência e incoerência. Et coetera.


As sem-razões do amor

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Carlos Drummond de Andrade



+++ Etecetera

Deep Water, Jewel

quarta-feira, 17 de março de 2004

Reflexões

Que diríamos da inocência? Carência de culpa, simplicidade, ingenuidade, candura.
Há sim o princípio geral da inocência, ou melhor, da presunção da inocência, mas que isso significa?
Na verdade, isto está bem mais ligado ao padrão adotado por uma determinada sociedade que uma conduta ética típica, propriamente dita. Geralmente sucede um acontecimento de exacerbada repercução, ou por envolver celebridades, no seu sentido estrito, ou por simplesmente ferir de tal maneira os costumes locais que não haja mais como pensar em possibilidades semelhantes.
Claro, estas coisas acontecem justamente pela defasagem temporal na previsão de atitudes desestabilizadoras. Regular o destino do cidadão é extremamente difícil, mormente para sua parcela laica, necessitando de profunda reflexão do legislador. Infelizmente, provou-se que na prática é impossível elaborar situações hipotéticas, não por falta de imaginação da população ou por escassez de recursos técnicos, mas por incompetência da maioria dos deputados e senadores, eleitos, respectivamente, para representar o povo e suas respectivas unidades federativas.
Como consequência, o princípio da presunção da inocência, que teve suas raízes fixadas nas Constituições do México, em 1917, e na da Alemanha, em 1919, que foi tão brevemente outorgado pelos franceses, em 1791, que foi hermeneuticamente ampliado à América do Sul e depois positivado pelo Pacto de San Jose, e que, finalmente, restou como cláusula pétrea em nosso ordenamento pátrio, tão importante príncipio acaba por favorecer a impunidade dos facínoras e delinqüentes natos, servindo como bases para defesas "in dubio pro reu", por falta de provas ou por, repito, incompetência legislativa.
De nada adianta desarmar um cidadão honesto, pois o criminoso nunca precisará de aval da polícia para andar com uma 9mm. De nada adianta triplicar a pena do traficante de drogas enquanto houver mercado consumidor em abundância no Brasil. E de nada adianta reduzir a idade penal se não dermos aos nossos filhos, no mínimo, o que tivemos na infância. Curemos a doença então, e não simplesmente receitemos o antibiótico. Falar é fácil, botar o nosso na reta é mais complicado!
E eu juro que queria falar de ingenuidade, não de inocência, mas fica para uma outra hora.



+++ Etecetera

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quinta-feira, 11 de março de 2004

Cerrado e Dilacerado

A porta se abriu
sentindo a esperança
cansada de esperar
simplesmente.

A janela também se abriu
numa revelação inédita

- e com ela a cortina
os olhos, a outra porta.


E desceu - onde pudera subir
onde devera subir
para onde deveria ter ido.
E sozinha, consigo.

E outras coisas se abriram
- a boca, o livro, a torneira

enquanto a alma
permanecia fechada.


Rodrigo Sluminsky



+++ Etecetera

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Eu sei, mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as
cortinas.
E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender cedo a luz.
E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíches porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que
pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável. A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua o resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta e que, de tanto se acostumar, se perde de si
mesma..

Clarice Lispector




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