sábado, 20 de março de 2004

Outra Comédia da Vida Privada
uma homenagem a Luís Fernando Veríssimo

O sujeito nasce, do nada, como se fosse qualquer hortifruti encontrado na mercearia do seu Agostinho. Parecido com aquele repolho de segunda-feira. Também não pedira para nascer. Fora jorrado do ventre de sua matriarca.
- Olha - diz ela -, ser mãe é "padecer no paraíso". Estou realizada!
Pois é, então! Tanto faz! Acontece que o maldito acabara por conhecer o que os religiosos chamam de "passagem". E dera de cara logo com aquele estúpido auto-didata que se denomina obstetra. Isso depois molestar sua mãe, agarrar suas pernas e bater na sua bunda.
No entanto, segundo o pai, nascera com um peso considerável - 2,789 Kg - e uma expressão de vencedor. Tinha até barba! Dá para imaginar a cara de felicidade do paspalho. Aliás, ninguém tinha muita certeza se aquele ser que estava na sala de cirurgia era realmente o pai. Eu não botaria minha mão no fogo. Sei que a dona Nezinha tinha um foginho no rabo (ah, como tinha!), mas nada que comprometesse sua idoneidade. Dava até pra entender. O seu Bartolomeu Fagundes era daqueles senhores com uma vida regrada, motivo de orgulho para sua mãe, dona Josefina. Não bebia muito. Trabalhava com afinco. Repudiava intensamente o ócio. Jogatina para ele era buraco com a sogra, a mãe e a esposa. Amigos, só na pelada de quinta à noite, mas tinha que ser antes das nove. E comia, como comia.
No final, surgiu um repolho com cara de menino, que, segundo o padre que o batizou, seria um garoto de muita sorte. Eu não sei ao certo se eles estavam sacramentando-o numa igreja ou num canjerê, mas sei que a merda estava feita. Choradeira por todos os lado. Comilança inescrupulosa - como em qualquer festa de família. Afinal, havia nascido para incomodar todos à sua volta.
Com dois anos de idade, seu Bartolomeu e dona Nezinha começaram a perder as estribeiras com o garoto. Agia de maneira estranha com os pais - comia pouco, não queria tomar banho. Resolveram levá-lo ao doutor "pau-de-arara", que agora se chamava pediatra. Riu, à primeira vista. Chamou-os no canto e explicou-lhes o "causo": seu filho é absolutamente normal. Ele simplesmente apresenta sintomas do Complexo de Édipo! E não é que o filho-da-puta ficava mesmo segurando o cocô? Só não sei dizer até que idade ele sentia essa aflição, mas o ciúme do pai para com a mãe, ao menos, durou até pelo os cinco anos de idade.
Passado um certo tempo, o garoto já estava pronto para à civilidade: era hora de colocá-lo na escola. E não porque ele tinha que aprender alguma coisa, por verdade, mas é que o pai e a mãe tinham que sair para trabalhar. Afinal, quem pagaria a escola do piazão? Só sei que no final ele acabou indo pro Jardim de Infância "Pequeno Príncipe", cujo CNPJ se repete 138 vezes só no Estado de Santa Catarina. Conhecera a Tia Paula, que lhe ensinara inúmeras coisas, tais como não subir nas portas, não mijar fora do vaso, não derramar suco na calça, não correr em sala de aula, não brigar com os colegas, não levantar a saia das meninas, não pular a janela etc. Até sua mãe reconhecera os "esforços" da diretoria da escola em aconselhar ao filho os bons costumes.
Transcorrido esse tempo de latência, chegara o momento de saber o que são aqueles troços na embalagem do seu salgadinho predileto. Sim, começara a "alfabetização"! Dizia ele para a mãe que o dinheiro era para compra papel de ofício (e como essa escola era ambientalmente irresponsável!). A tia do cachorro quente é que garantia sua renda mensal. Eu, hipoteticamente falando, não tenho do quê reclamar. Mas meus pais têm!
Noutros tempos aquele repolho mal-formado tornara-se um touro considerável, que aos quinze anos detinha seus 1,89m de altura. Lembro-me bem, como se fosse hoje, a discrepância de sua altura com a de seu pai (1,73m).
Utopia mesmo era a faculdade de fisioterapia. Acho que gostava dessas coisas de esporte e tal, como um boiadeiro das coisas da fazenda. Resolveu por cursá-la. Na colação de grau, desabafa à sua mãe: que merda, esse alvará para mexer na coxa dos outros não é o que quero! Acabou contratado pelo senhor Dorival, chefe de seu pai. Era agora assistente administrativo da segunda maior empresa de palitos de dente da América Latina.
Casou-se, enfim, com uma moça chamada Maria de Lurdes. Rapariga de família rica do noroeste da cidade de Palmeiral, no ápice de sua beleza, aos dezoito aninhos. Puríssima, com direito a namorico de portão, véu e grinalda no casamento e sangue na lua-de-mel. Raridade no mercado matrimonial.
Depois desse pouco tempo de experiências, sob o mesmo teto puderam perceber como a vida era mais que o conjunto de circunstâncias favoráveis. Morar juntos não chegava a ser difícil, mas era no mínimo estranho. Eles não sabiam, mas por incrível que pareça o amor estava com eles o tempo todo. No entanto, palavras de carinho e juras de amor eram minunciosamente calculadas. Publicamente, reservavam-se às risadas marotas, sem nenhuma interpretação extensiva. Eram certamente um casal comedido, cheio de mistérios. Ela, maravilhosa, percebe que aos vinte e dois anos suas nádegas não padeciam mais ao paraíso da mesma forma quando o rapaz as atracava ausente de pudor. Ele, por trabalhar com seu pai, recebendo ordens de um vagabundo ocioso, herdeiro das Matarazzo & Cia Corporações, sentia-se afugentado pela agonia. Ainda mais agora que a invenção mais supreendente dos cientistas alemães era uma espécie de anti-séptico bucal (não no seu sentido literal) chamado "fio-dental".
Odiernamente, chamavam essa aflição de melancolia, e aguda, coisa que se transformara em depressão matrimonial. E o pior era que ambos sentiam a angúsita da carência e não viam um no outro a resolução de seus problemas.
Um dia, então, um Domingo de Páscoa, para ser mais preciso, a sedução, que parecia ser recíproca, gerou uma fomenta imensurável naquela manhã nublada. Eis que, alguns meses depois, naquele primeiro dia do mês de janeiro de 1972, nasce a terceira geração dos Fagundes, para a felicidade de todos. Era mais enrugado e um pouco mais roxo, mas ainda tinha cara de repolho. Seu Bartolomeu, asmático, não pôde comparecer à festança. Sua avó, dona Nezinha, foi a primeira a pegar-lhe no colo, pois o pai, ou suposto, já que ninguém tinha muita certeza que aquele ser na sala de cirurgia era realmente o pai, estava emocionadíssimo com tamanha bênção divina. Lembraram-se todos da nossa senhora falecida, dona Josefina, matriarca da família. O avô, segundo a lenda, era um experiente pescador que morreu no norte da Escandinávia fugindo de uns corsários espanhóis. Mas isso já é uma outra história.

Rodrigo Sluminsky



+++ Etecetera

O Nascimento da Tragédia, Nietzsche

Nenhum comentário: