domingo, 29 de fevereiro de 2004

Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade


Mesmo que a vontade seja a de chorar, tem-se um vida pela frente. A solidão não necessariamente significa princípio de depressão, nos moldes modernos. Podem até rir de você, dizer que é insignificante ou que não mais funciona, ou ainda pisar até sentir-se todo alimentado por um egocentrismo exacerbado. O temor também esquecido pelos sucessivos antolhos a que somos submetidos, a saudade outrora substancial, a ternura, nada mais importa depois dos píncaros da discórdia. Correr contra o tempo para afugentar a derrota só torna o sentimento ainda mais vazio. Você pode gritar, ah, isso pode. Você também pode escolher permanecer em silêncio, ouvindo, e só ouvindo aquilo que é possivel. "José, mas para onde?". O essencial é escapar do fastio e não retornar à nulidade. Sim, chega o momento em que os ombros não mais suportam o mundo, mas aí o importante é manter a base e não derrubar as coisas que lhe ainda restam. Melancolia, muita melancolia!




+++ Etecetera

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